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sábado, 25 de setembro de 2010

CASAL 80


O que torna uma vida boa? A juventude?A idade pode ser uma limitação? Certamente o que fazer é ditado pelas condições físicas, sociais e emocionais. Ninguém em sã consciência, desce uma montanha de neve num par de esqui a 100 quilômetros por hora, com 100 anos de idade. Mas há muitas outras coisas a fazer com esta idade. Descobrir o que fazer em cada fase da vida, é uma arte. Quem encontra, acrescenta prazer, seja qual for a idade.
TÔÔÔÔÔÔMMMMMM. Quando a sirene do transatlântico toca, o casal se olha e suspira, é o quinto cruzeiro marítimo que realizam. Estão em pé no convés, de mãos dadas. A brisa do mar descabela os fios brancos de Welfare Hanriot e acaricia o rosto de dona Marina. O nome de Welfare, escolhido pela madrinha, homenageia um grande jogador do futebol carioca da década de vinte. Ele com 81 e ela com 80, decidiram há dez anos realizar o sonho maior de suas vidas: viajar de navio. Não mais pararam. O cruzeiro da vez parte do porto de Savona na Itália. Até lá, enfrentaram muitas horas de voo. Uma hora de Brasília para São Paulo e mais onze até a cidade italiana.
O planejamento das viagens é feito por eles mesmos. São criteriosos. Sentam na sala da casa onde moram, com decoração bem arrumada e ladeados pela cadela cocker Duda, que não anima de ver os donos prontos para outra ausência. Após algumas horas trocando idéias e roteiros, procuram uma agência de viagens. “Nossos passaportes sempre estão em ordem, nunca se sabe quando a vontade de viajar toma conta da gente”. Dona Marina é decidida. “Não quero nem saber de minha dor no ombro”, Welfare refere-se a uma dor crônica, conseqüência da queda do telhado da residência, durante a obra, trepado numa escada de dois metros, quando tinha 70 anos.
“Lucinha, adivinha onde estamos? Em Recife”, anunciou certa vez dona Marina para a filha. “Eu e seu pai pegamos um navio no Rio de Janeiro e viemos para cá. Semana que vem, estaremos em Brasília de volta”. A filha se espantou. Hoje não acontece. Está acostumada com a independência dos pais que, mesmo idosos, tomam suas decisões e não querem ninguém para dar pitaco, nem os filhos. “Isto aconteceu há cerca de 10 anos, numa das primeiras viagens deles”, Lucinha ri, quando relembra o fato.
O navio se afasta lentamente da costa italiana e singra os mares rumo ao Brasil. É a navegação mais longa que fazem. São 24 dias ao sabor das marolas, do céu e da curtição a bordo. “Ao chegarmos em Savona, tivemos que ir para um hotel dormir, pois o navio só partiria no dia seguinte”. Mas eles não se apertam, já enfrentaram muitas contrariedades e deram conta de todas. “Preferimos chegar um dia antes da partida do navio, para evitar correrias. O hotel foi caríssimo, mas valeu a pena”.
Enquanto o navio segue rumo ao estreito de Gibraltar, iniciam os contatos com os tripulantes e passageiros.
Os tripulantes são de localidades diversas, asiáticos, hondurenhos, latinos e até brasileiros. “São raros os americanos ou europeus na tripulação”, Welfare conta sobre a fartura servida nas viagens. “Os restaurantes a bordo servem comidas de origem internacionais. Carnes variadas e de qualidade e, claro, muito frutos do mar. Precisa ver o camarão. Óh!” E faz um gesto demonstrando que o tamanho do crustáceo é o mesmo do dedo indicador. “Só não aceito ver passageiros que repetem a refeição até não aguentar mais deixando tudo no prato. Que desperdício”! Welfare, indignou-se quando viu um passageiro pegar uma maçã, não dar nenhuma uma mordida e deixá-la no prato, inteira, para ser jogada fora.
A viagem segue tranqüila e eles ampliando as amizades, graças a facilidade de dona Marina em fazê-las. Mas não é somente ela que as cultiva. Welfare, apesar de estar acometido de uma surdez avançada, inclina o rosto, apura o ouvido, faz concha com a mão e conversa com todos, troca idéias, dá opiniões. Fala alto e gesticula entusiasmado. “Sou surdo”, explica.
Dona Marina aposentou-se como diretora em uma escola de alunos excepcionais em Brasília. Eram crianças e jovens adultos com dificuldades de relacionamento, cuja convivência a fez desenvolver habilidade mesmo com os mais fechados e introspectivos. Welfare, capitão aposentado do Exército, é mais duro, mas também tem facilidade em interagir. O passatempo predileto é perguntar à tripulação sobre a dinâmica do navio, como por exemplo para onde vai o lixo. “É incinerado em enormes caldeiras e a fossa é esvaziada quando está atracado nos cais”.
“Gostamos de viajar de navio, porque tudo está ao alcance das mãos. Boa comida, apartamento confortável, pessoas para conversar”. Antes viajavam em excursões, aviões, ônibus, translados, hotéis e inúmeros passeios cansativos. Hoje acabou a disposição para enfrentar estas maratonas. O navio oferece num lugar só, tudo isto com a vantagem que há shows, festas e muitas atrações.
“Fizemos muitas amizades duradouras nestas viagens”. Dona Marina enumera os amigos ali angariados. “Há um senhor, o “seu” Alberto, morador do Rio de Janeiro, que toda vez que vai a Caldas Novas nos avisa para encontrarmos”. Um casal de Brasília que conheceram numa das primeiras viagens também permanecem amigos. “Vez por outra nos encontramos e tomamos chá”. Outra que se juntou a eles nos passeios, foi dona Tonita. Vaidosa senhora de 70 anos, moradora da Asa Sul, antes viajava solitária.
A atividade a bordo que sempre participam é o jantar de gala com o Comandante, onde a autoridade maior divide a mesa com os passageiros. A ocasião exige uma roupa a altura, mas eles não se apertam. Levam na bagagem um vestido longo de dona Marina e o terno cinza de Welfare. Assim, preparam-se para a noite com esmero, e comparecem elegantes para o encontro no restaurante principal, o mais luxuoso.
“Há muita diversão. Shows fantásticos. Por exemplo, há cruzeiros específicos em que o principal é a apresentação do Roberto Carlos. É muito lindo, já fomos a dois. O show que mais gostei foi o do Mielle.” Dona Marina não poupa elogios para o show-man dos anos 60. “Ele promove karaokê entre os passageiros que competem para escolher o melhor cantor de bordo. Depois conta piadas. Canta e encanta com seu charme”.
A embarcação segue pelo canal de Gibraltar e entra em mar aberto. “À noite em alto-mar é linda quando observada do convés. É comum ficarmos, Hanriot e eu, sentados a beira da piscina olhando as estrelas. A lua cheia banhando o mar de luz é esplendorosa.” Empolga-se dona Marina.
As ocorrências desastrosas em navios, relatadas ultimamente, não os intimidam. “Há muitas tragédias maiores em outros meios de transporte. Às vezes acontece de um ou outro passageiro enjoar, mas na maioria das vezes, ninguém sente nada. Os transatlânticos são pesadões e oferecem muita segurança.” Welfare é otimista e tem energia sobrando. Pudera, seu nome significa saúde, bem estar e satisfação! Onde moram há uma bem montada oficina de consertos de tudo. Chuveiros, guardas sóis, cortadores de grama, enfim, tudo que cai na mão dele, é consertado. Se não conseguir arrumar, inventa uma peça nova. Certamente substituirá a defeituosa. “A única coisa que sinto falta nestas viagens é de minha oficina, onde me sinto o próprio professor Pardal”. Se ressente de não ser mais calmo, menos ansioso. Conta que quando um conserto não dá certo, joga longe, geralmente espatifando o objeto. Depois se arrepende e precisa consertar mais coisas.
Welfare é emocional e profundo respeitador da natureza. Esmera-se em economizar água. “Água é nosso bem maior e desperdiçamos”. Diariamente alimenta os pássaros pretos, periquitos e pardais que chegam nos jardins da casa. Chegou a instalar uma casinha de barro para distribuir sementes de girassóis, alpiste e farelo.
Ao chegar à Ilha da Madeira, olham pelo convés. O dia está chuvoso e não vêem necessidade de revisitá-la. “É assim mesmo, mais uma vantagem do navio. Quem não quer descer, não precisa. Estamos muito bem a bordo. Além do mais, em outro cruzeiro, fizemos uma bela excursão aqui”. Dona Marina gosta de enumerar os pontos positivos da viagem.
A partida da Ilha acontece no outro dia, iniciando assim, a travessia do Oceano Atlântico. Serão alguns dias de céu e mar, aproveitando as atrações montadas para os passageiros. Comida abundante, shows, conversas a beira da piscina, noites enluaradas, acomodações de primeira, descanso merecido para quem, após luta de anos e muito trabalho, tem condições favoráveis para usufruir de comodidades e passeios. “A saúde é nosso maior bem. Tem muita gente que não dá valor, mas quem tem deve aproveitar a dádiva de Deus”.
Católicos fervorosos, quando estão em Brasília assistem a missa diariamente pela televisão. Em casa, possuem uma espécie de altar em que depositam oferendas e prestam homenagem ao Sagrado Coração de Jesus, que “é a imagem de nossa devoção”.
Eles tem dois filhos. A Lúcia e o Carlinhos. Ela com 54 anos e ele com 53. Ela mora em Brasília, ele em Manaus. Nesta viagem, o transatlântico adentrará o Brasil pela ilha de Marajó e navegará o rio Amazonas até a capital do estado. Ficarão o bastante para rever além do filho, a nora, os dois netos e o bisneto, motivo de orgulho do vovô e da vovó.
Mas as viagens nem sempre ocorreram às mil maravilhas. Certa vez com tudo pronto, o agente ligou de véspera dizendo haver um problema e que as duas cabines, reservadas e pagas, seriam condensadas em uma, sem direito a reembolso. “Logo desta vez, que a Lucinha vai junto e que reservamos uma cabine só para ela, acontece isto”. Dona Marina ficou revoltada. Mas resolveriam isto na volta. Um acontecimento destes não iria abortar os planos. Mal sabiam que os problemas estavam recém começando. Ao chegar ao aeroporto de Brasília para tomar o avião para São Paulo, foram informados que o vôo estava atrasado e os aconselharam a tomar outra aeronave, com escala em Goiânia. Ao decolar para São Paulo, após esta escala, Dona Marina, sente-se mal e sofre um AVC em pleno ar. Procuram não perder o controle e o vôo segue. Ao chegar em Sampa, uma ambulância requisitada pelo comandante os espera e a leva ao hospital do Exército. Até pensaram em cancelar o cruzeiro. Mas dona Marina, para espanto dos médicos e da familia, demonstrou uma energia incomum e pediu que lhe dessem alta. “Eu quero embarcar nesta viagem”. Os médicos a atenderam. Deram-lhe a alta solicitada, pois o AVC foi diagnosticado como de intensidade leve. Apenas recomendaram a Welfare e a filha que ficassem alertas para qualquer anormalidade. Graças a persistência de dona Marina, a viagem transcorreu normal e se divertiram muito.
E qual seria a viagem que mais gostaram? “Claaaaaaaaaro que foi aquela que minha filha e as minhas netas estavam. Foi tudo de bom. Quer coisa melhor do que viajar com quem se ama?” Apesar de ter curtido as netas, a avó confessa que houve momentos de certa preocupação. No cruzeiro com elas, o trajeto iniciou no Rio de Janeiro indo para Ilhéus, depois Salvador, Búzios e finalmente retornaram ao Rio de Janeiro. Pois foi justamente em Búzios que aconteceu a preocupação com a neta Aline. Neste ponto do cruzeiro, todos desceram em botes salva-vidas para dar um passeio turístico na cidade. O transatlântico permaneceu ao largo, em alto-mar. Na volta, a neta atrasou-se para o reembarque, e eles resolveram ir primeiro e aguardá-la no navio. Em Búzios não há cais que comporte transatlântico. O retorno deles foi efetuado com alguma dificuldade, principalmente na hora do translado do bote para o navio, pois o mar estava revolto. Aline atrasou-se e no momento da travessia, o mar se encontrava agitadíssimo, com ondas invadindo o bote. A avó, do alto do convés, nada disse ao avô, mas ficou a rezar para que tudo saísse bem. “Deus atendeu minha reza e a netinha subiu de volta para o navio, com sobressaltos é verdade, até ela ficou assustada, mas foi tudo bem, graças a Deus”. Disse e benzeu-se.
A travessia do Atlântico é demorada. E para garantir a diversão permanente dos passageiros, a rotina diária do transatlântico é acrescida de muitas atividades. Normalmente o casal faz suas programações e participa das que os tripulantes promovem. O café da manhã, por exemplo, se prolonga até 10h30. Na mesa onde é servido, conversam com outros conterrâneos do cruzeiro. Piadas e histórias histórias divertidas não faltam. “Há velhinhas que jogam dia e noite nas máquinas caça-niqueis, veja que perda de tempo. Hanriot detesta jogo de qualquer espécie, não sabe jogar e nem quer aprender”. Diariamente assistem a missa das 11h, ministrada pelo capelão. A tarde fazem a sesta. Após, vestem-se para o jantar, que sempre é muito farto. Quando anoitece, escolhem um local agradável e conversam sobre suas vidas. Relembram os anos duros, os parentes difíceis, as contrariedades enfrentadas por ambos. “Minha vida de casada foi muito melhor, quando solteira, passei muito trabalho”. Ambos são unânimes em achar que os jovens devem estudar sempre. “Eu parei porque casei” diz dona Marina. Várias atividades ela empreendeu bem mais tarde, com os filhos já adolescentes, como a conquista da carteira de motorista, o curso superior de pedagogia e a participação na ADESG - da Escola Superior de Guerra. “Aprendi muito com as pessoas. Um dos ensinamentos, foi que o egoísmo não é um sentimento bom. Querer tudo para si é ruim. Aprendi também que todos devemos ter um projeto de vida”. Para Welfare, o “estudo servirá para o jovem conseguir boa colocação, bom emprego”. Aprendeu lições valiosas com os pais. “Me deram bons exemplos que repassei para meus filhos, conduta exemplar, moral, ética e responsabilidade que é o que está faltando em muita gente”.
Vez por outra o tempo fecha, o mar fica encarpelado. Mas eles já estão acostumados, nada os atemoriza. Não enjoam. Há pessoas que vomitam, que se sentem solitárias na viagem, não é o caso deles. Estão sempre abertos à comunicação. “O elogio é uma forma de se relacionar. “Como você está bonita”, dito na hora certa, levanta o astral de qualquer um e abre o leque de um relacionamento saudável ou um papo agradável”, dona Marina usa sua experiência como professora nestas horas..
Lúcia, a filha que mora em Brasília, não se preocupa com as viagens de seus pais. Considera-os bem independentes. No ano passado, 2008, viajaram sozinhos para o Rio de Janeiro com a finalidade de visitar uma irmã de Welfare que estava de aniversário. O pai foi dirigindo o carro sozinho, desde Brasília. Voltaram para casa duas semanas depois. Para Caldas Novas, onde possuem um apartamento, rumam pelo menos uma vez por mês. “Como me preocupar se eles nem me consultam sobre as viagens. E nem precisam. Só participam que estão de partida.” Lúcia relembra. “Viajar pelo Amazonas, num transatlântico, sempre foi o sonho de meus pais, ouço isto desde menina. Esta viagem é a realização de um sonho dos dois”. Acredita que a procura pelos cruzeiros de navio se deve a dificuldades de locomoção, principalmente da mãe. Ela sofre de um desgaste da cabeça do fêmur com o quadril, o que ocasiona cansaço e muita dor quando se movimenta em demasia. “As excursões em ônibus são muito cansativas, exigem longas caminhadas e visitas a monumentos e prédios históricos”. Num destes cruzeiros marítimos, a filha foi com eles. E ainda bem que foi pois aconteceu o AVC da mãe. “Veja que esta viagem, provou o grau de persistência dela. Mesmo com o que ocorreu, participou de eventos e nunca optou por se recolher na cabine em detrimento de shows, almoços ou jantares. Sem reclamar, caminhou normalmente pelo convés, onde olhava o mar e o horizonte, como querendo viver os momentos como estavam acontecendo, sem forçar nada”.
Na casa existe um quarto só para as malas. Nem as desfazem. Ficam semiprontas esperando a próxima viagem, que pode ser um cruzeiro, uma visita a parentes no Rio de Janeiro ou Manaus, ou ainda uma aventura mais curta para Caldas Novas.
O navio agora passa pelo rio Amazonas e eles se encantam pelas cores marcantes das águas escuras do rio Negro e amarelas do rio Solimões. É o encontro das águas. Duas manchas paralelas que não se misturam por quilômetros.
Adoraram as ilhas do Caribe, principalmente a de Consumel, na qual Welfare mesmo perdendo o aparelho de audição, não se furtou em excursionar para assistir a dança dos golfinhos.
Em Manaus o filho os espera com festa. Ficam por pouco tempo, logo se recolhem ao navio para reiniciarem a navegação do rio e o retorno às águas do Oceano Atlântico, rumo ao Rio de Janeiro, onde termina mais este cruzeiro. Permanecem mais cinco dias na capital fluminense visitando os parentes e só após retornam à Brasília.
Foram vinte e nove dias desde a partida para a Itália. Recolhem as malas na esteira e cumprimentam a filha que foi buscá-los no aeroporto. No trajeto até a casa, falam muito, gesticulam, perguntam sobre os acontecimentos da casa, da cidade.
Após descarregarem as bagagens no quarto das malas, sem desfazê-las, sentam na espaçosa sala da residência.
“Sabe Marina, precisamos ir a Caldas Novas depois de amanhã. Preciso fazer a revisão do carro que comprei na concessionária de lá e quero aproveitar para cortar o cabelo.”

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