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quarta-feira, 27 de abril de 2011

CAFÉ COM EMPADAS

( Foto do google imagens)






No café lendo o Correio Brasiliense percebi Márcia saindo do banco com a habitual melancolia. Sofria de depressão há anos e a cura andava distante. Cumprimentamo-nos efusivamente, de minha parte é verdade, ela parecia infeliz como sempre. Havíamos trabalhado juntos em um Ministério e na época falara das mazelas, incluindo a eterna luta contra a doença.
Perguntei se fazia psicoterapia. Negou. “Não há mais necessidade, fechei o ciclo de dez anos”. Precisava retomar o mais cedo possível, pensei. Convidei para um café. Primeiro justificou estar apressada, depois aceitou. “Somente três minutos, a filha me espera.” Perguntei sobre o casamento. Suspirou demonstrando cansaço, sentiu apoio e desenrolou a história. Apenas no inicio da relação sentira-se feliz. Rodrigo, o marido, era amável, tranqüilo. Casamento perfeito que se completava financeiramente com bons salários do casal. Tiveram três filhos. Moravam no Lago Sul numa bela casa sempre cheia de gente. “Duas empregadas, jardineiro, piscineiro e caseiro se desdobravam a organizar tudo.” Conseguiam manter conforto e ganho financeiro com rotinas simples. Pela manhã saiam antes das oito com os três filhos e os deixavam no Colégio Marista, um dos melhores da capital. Retornavam cerca das oito da noite. “Hoje reconheço que não tínhamos diálogo”.
Contou-me que mesmo com a depressão desde os tempos de solteira não reclamava. “Ao sentir-me deprimida, tomava a dose do remédio indicada pela psiquiatra e pronto. Ficava satisfeita e a vida seguia.”
Como o casal trabalhava muito, Márcia foi orientada pelo psicoterapeuta a programar viagens para colocar a relação em dia. “O psicólogo explicou que agitação comprometia nossa estabilidade.” Procurou a agência de turismo do Gilberto Salomão e informou-se sobre viagens ao exterior. Com a proposta de excursão pela Europa em mãos, tentou convencer o marido. “Rodrigo alegou falta de tempo e não pensei duas vezes. Comprei o pacote e rumei a Europa em férias de 20 dias. Hospedei-me nos melhores hotéis do velho continente e me diverti demais”, confidenciou-me quase sussurrando. Parabenizei-a, mas não identifiquei um gesto seu que traduzisse satisfação. Pedi duas empadas, ao pressentir que o almoço sairia tarde.
“A viagem significou a realização de um sonho, mesmo estando só.” Continuei sem perceber entusiasmo em Márcia. “Na saída de Brasília, Rodrigo desejou-me que curtisse a viagem para podermos visitar juntos os quatro cantos europeus.” Visitou os principais monumentos e pontos turísticos da França, Portugal, Itália e Espanha. No total, tirou mais de mil fotos. Prometera montar uma apresentação a família, o que não ocorreu.
Enquanto cumpria o roteiro o marido ficou sozinho em Brasília na companhia dos filhos.
A mãe de Rodrigo tivera três filhos homens e sua irmã mais nova, três filhas. Desde crianças, mãe e tia programaram o casamento entre os filhos. “Na família dele é normal. Tanto que acontecera com os dois irmãos dele e as primas. “Rodrigo foi o único dos irmãos a escapar.” Percebi amargura em Márcia. “Ao saberem de meu passeio, promoveram uma viagem ao pantanal. Chamaram os primos casados, Rodrigo de Brasília e a prima solteira, que morava com a mãe numa cidade do interior mineiro.
A viagem deles pelo pantanal durou uma semana. Alegando problemas de cabines, as mães acomodaram o casal de primos no mesmo compartimento. “Esqueceram que a moça contava 18 anos e Rodrigo era um cinqüentão
Márcia foi recebida no aeroporto pela sogra, cheia de cerimônias. “No caminho até a casa, a mulher desenrolou a paixão do filho pela prima e sobre a excursão ao pantanal. Arrematou dizendo que Rodrigo montara casa com a menina e a tia”.
Na primeira oportunidade, Márcia questionou o marido. Ele confirmou. Na divisão dos bens, a parte de Márcia foi a casa.
Os filhos cresceram. Os dois homens casaram e lhe deram dois netos a filha se prepara para casar.
“Construí quitinete para mim nos fundos e deixei a casa para minha filha e o namorado”.
O celular de Márcia interrompe a conversa. Ouve com os olhos arregalados, desliga e levanta agitada. “Vou levar a comida da filha e do genro que esperam em casa”.
No total, ficamos conversando duas horas. Despediu-se de cabeça baixa e sem tomar café. Sentia culpa por falhar nas obrigações e conversar preguiçosamente na cafeteria.

sábado, 16 de abril de 2011

DIFÍCIL DECISÃO

Fonte: imagens do Google Quando a porta da frente abriu, Izabel olhou o relógio. Cinco horas da manhã. Celso entrou cambaleante e incerto, tropeçando na mesa de centro. Deixou atrás de si rastro de barro, cheiro de bebida e mau humor. Desabou no sofá. A mulher aprendera a identificar o momento péssimo para discussões. Repetia o horário de chegada pela terceira vez na semana. E certamente não seria a última. A camisa em desalinho, a calça amarrotada, a gravata torta, não deixavam dúvidas. Dormira acompanhado em algum lugar. No quarto, Cristina e Mônica dormiam inocentes. Izabel aproximou-se carinhosamente, beijou-as e saiu fechando a porta. Protegia as filhas de verem o pai naquele estado. Na sala reencontrou o marido emborcado no sofá, com uma baba que o unia a uma poça de vômito no tapete. Uma ânsia na boca do estômago, a fez virar o rosto. Procurou na agenda a página da advogada. Há dois anos o casal trocara a cama por duas de solteiro. Mulher fogosa, plena de energia, no início do casamento sentia-se preenchida. Mas a vida os distanciara. As filhas exigindo atenção, os compromissos de trabalho, o descontrole da bebida e por fim o verdadeiro motivo do desgosto. À medida que se distanciavam, colocava a culpa da inapetência na frieza da mulher. Apesar de humilhada nas rodas de amigos e em reuniões de família, nunca o desmentira. Esperava que tirassem as conclusões. O caldo entornou ao descobrir o caso amoroso com uma colega de trabalho. Descuidado ao beber, deixara cair um bilhete apaixonado de Sônia. Com as bebedeiras Izabel estava até acostumada, mas traição era insuportável. Precisava, no entanto ter certeza. Certo dia acompanhou-o a um jogo do Flamengo na casa do Ranulfo, colega de trabalho do marido. Lá notara Celso e uma mulher trocando olhares cúmplices e conversando ao pé do ouvido. Ambos bebiam e brindavam a todo instante. Izabel procurou a dona da casa e disfarçadamente informou-se sobre aquela mulher. “É a Sônia, irmã do Ranulfo e trabalha na empresa no setor de Celso. Com a decisão tomada, preparou o café da manhã para os filhos e deixou o lugar do marido vazio. Explicou à empregada que o almoço também o excluiria. Benedita entendeu. Foi à área de serviço, pegou balde, água, sabão e pano e iniciou a limpeza do tapete. No sofá, Celso roncava displicente. Faltaria ao trabalho, pois Izabel não o acordaria como das outras vezes. No meio da manhã, procurou o escritório de advocacia para solicitar o encaminhamento dos papéis da separação. Marcou uma consulta ao cardiologista. Entraria com atestado de afastamento do trabalho para enfrentar a tormenta. As filhas, mesmo sabendo do pai alcoólatra e da descoberta da outra, não admitiam a separação. Nem a ameaça de Celso excluí-la do plano de saúde fez Izabel desistir. Separaram-se em meio a um divórcio conturbado, pleno de acusações. Izabel entrou em profunda depressão. Não que sentisse falta do marido, mas pelas cobranças das filhas. Percebera que vida de mulher descasada era cheia de desafios e a liberdade conquistada agora a sufocava. Era dona de seu nariz, mas crenças adquiridas ao longo da vida, a paralisavam. Os pais deixaram marcas profundas. Mãe resignada e pai ausente foram os principais juízes. Acreditavam que por pior que seja um casamento, deve ser levado como carma, até o fim da vida. Ao fazer psicoterapia mudanças foram inevitáveis. Não somente pela descoberta de si mesma, mas porque numa das idas ao consultório, trocou olhares com Bragança. Ele frequentava o mesmo consultório para administrar conflitos conjugais. Marcaram um jantar e, à saída, foram ao apartamento dela, onde tiveram momentos de ternura e intimidades. A cada encontro, raros pela situação de Bragança, aumentavam as descobertas. Izabel experimentava momentos únicos. Celso foi o primeiro namorado numa época de proibições para o mundo feminino. Agora, graças a psicoterapia, sentia-se livre para experimentar novos horizontes. O fato de o parceiro ser casado, não a incomodava. A relação durou seis meses e a mulher saiu fortalecida e feliz. Com feridas cicatrizadas e aberta a novas relações, partiria a procura de alguém que compartilhasse a vida com a nova Izabel. Passou a entender que o passado não pode ser modificado e o futuro depende do hoje. Sendo assim viveria o presente, sem expectativas e frustrações, focada em plantar relacionamentos maduros, livre dos males do ressentimento e da culpa

terça-feira, 5 de abril de 2011

LUTO COMPULSÓRIO

(foto do blog Deus é fiel) Cedo naquela manhã de janeiro, Marlene saiu para buscar o filho Rodrigo. Recebera um telefonema anônimo às cinco horas informando que o viram entre os edifícios Carioca e Jesse Freire, no Setor Comercial Sul. Antes de sair preparou o café para Patrícia e Vitor que ainda dormiam e logo iriam a Universidade. Dirigiu até o local indicado, onde estacionou em frente ao Shopping Pátio Brasil. Ao aproximar-se sentiu um forte cheiro de urina e um enjôo queimou-lhe o estômago. Dos dois lados da rua, entre os edifícios, jovens perambulavam sem rumo como a procurar algo imaginário. Mais a frente, um grupo discutia em altos brados, distante uns dos outros, gritando frases desconexas. Em comum, pés descalços, calças amarrotadas, suor de noite mal dormida e um cheiro acre de carvão queimado. Os sem camisa, pareciam não sentir frio, apesar do vento a fustigar o corredor cinza entre os prédios. Esgueirou-se em meio aos edifícios, desviando de papéis e objetos jogados dos edifícios. Os containeres de lixo, abarrotados, pareciam elefantes paralisados. A cada grupo que aproximava parava e procurava em meio aos rostos desfigurados, o do filho. Eram jovens acocorados aspirando fumaça de cachimbos feitos com latas de cerveja. A lenta caminhada só acabou ao reconhecer a calça que Rodrigo saíra na noite anterior. Uma perna fina e a mão ossuda e não teve dúvida, era ele. Apertou o passo e, de mansinho, como que temendo assustá-lo abraçou-o junto ao peito como quando oferecia o seio na primeira refeição da manhã, ainda bebê. Tirou o casaco e cobriu o dorso nu daquele ser fraco como um moribundo. Na noite anterior, Rodrigo saíra apressado penteando os cabelos negros dentro do carro, agora estavam sujos e desalinhados. Marlene repara nas costelas a mostra do antes musculoso aluno da academia de musculação. Ergueu o filho nos braços, somando as forças que a natureza dá as mães nestas horas e correu para o carro. Reconheceu a necessidade de atendimento médico. Ao retornar entre os edifícios, não encontrou mais ninguém, como se tudo que vira fosse apenas um pesadelo. O dia nublado e as trovoadas eram prenúncios de chuva grossa. O barulho dos automóveis e o burburinho dos trabalhadores abafaram o choro baixo do menino no colo. Na primeira vez que o recolhera das ruas, sentira fraquejar as forças e só colocou no automóvel com ajuda. Agora, o garoto estava extremamente magro e a mulher o transportou com facilidade. Rodrigo usava drogas desde os 15 anos, mas só há pouco fora descoberto. O rapaz está com 25 anos. As sete horas chegou ao Hospital da Asa Norte, gritando por atendimento. Rodrigo continuava desfalecido nos braços da mãe passava por um surto de uso de drogas. Estava em coma. Marlene reconhece que o filho não é único e está disposta a ajudá-lo e a quem mais necessite, neste caminho de busca da sanidade. Só espera que, no caso do filho, se conscientize. As seqüelas são irreversíveis e quanto mais cedo deixar o vício, mais chance terá de recuperar. O trabalho de Marlene para retirar das ruas jovens prisioneiros do vicio é arriscado mas compensador. Ela sabe que não é só o filho a precisar de ajuda. Diz que usa armas que incontestáveis: “amor no coração e afeto ao próximo” e complementa, “com estas ferramentas, nem traficante pode”. Pelo marido, viciado em álcool, diz não ter muito que fazer, “depende dele a vontade de parar (com a bebida) e fazer um tratamento”. “Filho é do meu sangue e devo cuidar”. O homem sabe o caminho, freqüenta os Alcoólatras Anônimos e está consciente da doença, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde. Marlene assume que para ajudar alguém, seja consangüíneo ou não, há que primeiro se ajudar. E cita o exemplo da Comissária de Bordo, que instrui os passageiros para o caso da despressurização da cabine. “Quando as máscaras de oxigênio caem, coloque primeiro a sua e depois ajude a quem tem dificuldade.” Ela é mais uma na infinidade de mães e pais que acompanham seus filhos na difícil jornada da recuperação das drogas. Freqüenta grupos de apoio e entende que a melhor forma de passar por seus lutos compulsórios é a prestação de serviços a comunidade. Pelo menos duas vezes por semana, dá palestras e participa de grupos de auto-ajuda. A mulher conseguiu uma legião de destemidos guardiães da vida. Nas noites de Brasília podem ser vistos rondando os locais de uso, as cracolândias, armados até os dentes com as armas que dominam: “abraços e beijos, coisa que mais falta ao usuário de drogas.”