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quarta-feira, 4 de maio de 2011

ENDEREÇO INCERTO







(fotos : Marco)
























Ana chega à janela do apartamento e espia o homem da bicicleta. Está lendo embaixo da árvore de ramagem espessa, protegido do sol por sombra densa. Lê diariamente desde o amanhecer. De um lado, a bicicleta equipada com vários compartimentos, do outro, a caixa do tamanho de um container, guarda bens preciosos. Quem seria o misterioso que há cerca de três anos mora na rua, em frente a janela? Evitava se aproximar e falava a filha ser perigoso. Mas um dia, movida pela curiosidade desceu aos pilotis do bloco e aproximou receosa. De perto, verificou que o receio era sem fundamento. Deparou-se com um homem de pele morena, altura média, idade indefinida, sem dentes, meigo e sorridente. Roupas surradas, mas limpas. O queixo proeminente vez por outra apontava para cima e indicava arrogância, mas logo se escondia atrás do sorriso franco e olhar fugidio.
Francisco Kaefer, em primeiro de setembro de 2011, faz 37 anos. Estudou até a sétima série. "Acredito em Deus mas não tenho religião”, fala sorrindo quando perguntado. É natural de Cascavel no Paraná. Possui seis irmãos e três irmãs. Um dos irmãos, o mais querido, morador de Cuiabá, morreu atropelado. O restante não os considera e faz questão de manter distância. “Sou o irmão mais novo e tenho vinte anos de diferença da irmã mais velha. Quando meu pai morreu, em 1978, os mais velhos se acharam no direito de dar ordens. Não aceitei a imposição e sumi da vida deles. Quero-os longe.” Revolta-se. “Só sabem discutir comigo”. Quando em 1994, a mãe faleceu, não o avisaram. Soube da morte duas semanas depois. Sem tempo de providenciar a viagem para dar adeus a mulher que o colocou no mundo, resignou-se.
O morador de rua raramente o é por vontade própria. Algo forte ocorreu que o afasta do convívio, colocando em posição social contrária.
Existem estudos para descobrir os motivos que levam as ruas. O desemprego, a falta de estrutura familiar, problemas com a justiça, vícios (drogas ilícitas e lícitas, como o álcool) ou problemas mentais, são os comuns. Francisco em nenhum se enquadra.
Nem mendigo, nem pedinte, Francisco é artesão e desenhista. A bicicleta além de meio de transporte mostra sua arte. É decorada com desenhos geométricos, nas cores amarela e vermelha. No inicio, fazia e vendia artesanato na torre de TV. Interrompeu este comércio após ser delatado pelos comerciantes aos fiscais. Hoje, faz parceria com os artesãos que revendem suas obras.
A outra ocupação é com reciclagem. Cata latinhas e materiais plásticos e revende numa recicladora da Asa Norte. Isto permite vida folgada, mas de conforto duvidoso. É um poupador e defende a poupança. Principalmente porque a vida na bicicleta, num trânsito praticamente exclusivo para quatro rodas, é perigosa. Francisco ganha cerca de R$ 1 400 mensais com as atividades de artesanato e reciclagem o que garante a conta na Caixa Econômica Federal. Além do gasto com a pensão, gasta cerca de R$ 400, sendo R$ 280 para comprar comida e R$ 120 para livros e revistas.
O paranaense afirma que está nas ruas porque quer, gosta. Não paga contas de luz, de água, condomínio ou aluguel. Mesmo com ganho mensal razoável, prefere a rua, sem endereço, anônimo. Sente solidão, mas quem está livre dela? Não quer mulher para dividir o espaço que é grande, mas que dividido por dois, será a metade. Para se aliviar usa os serviços das prostitutas. “Faço, pago e elas vão embora, sem compromisso. A convivência só incomoda”. Fala firme, deve ter conhecimento.
Há mulheres, catadoras de latinhas que querem dividir espaço. Mas resisti. Moradora de rua, jamais. A última que tentou colocar rédeas, morava com três filhos adolescentes fumadores de maconha numa invasão. “Para evitar riscos, sai fora.”
O bem mais valioso, depois da vida e da liberdade, é a bicicleta. Conheceu o Brasil inteiro em duas rodas, incluindo Manaus com a dificuldade da floresta amazônica. Antes de Brasília, morou nas ruas de Cascavel, Araguari, Uberlândia e Cuiabá. Quando ainda morava na cidade natal, arriscou-se a ir ao exterior. Foi parar no Paraguai e depois no Uruguai.
A bicicleta tem radio, iluminação de tipos e cores diversas, compartimentos visíveis e invisíveis que guardam segredos e é toda reforçada para rebocar o pequeno container. As pilhas retiradas dos lixos do Plano Piloto alimentam as lâmpadas “o pessoal as joga fora ainda com carga e me servem por bom tempo”.
Francisco tem filho de 12 anos que vive com a mãe em Cuiabá, e paga pensão de R$ 350,00 estipulada por juiz. “Pago direito a pensão. Desconta direto de minha conta bancária. Atraso no pagamento dá cadeia e não quero nem pensar nisto”, fala com medo. “Respeito o ladrão, mas também respeito a Policia, na verdade tenho medo dos dois.” Vez por outra, vai a capital do Mato Grosso visitar o menino.
Ana acredita que existem muitos ganhos secundários em morar na rua. A liberdade, a preservação do direito de ir e vir e do desapego, os mais importantes. Francisco coça a cabeça sem jeito e discorda, “O custo disto é alto, não tenho a mínima segurança nas ruas. O maior inimigo de quem mora nas ruas é o próprio morador das ruas.” E acrescentou que vivem oferecendo droga. “Minha liberdade não compro, nem vendo por droga nenhuma”. Aproveitou para contar que quase morreu há três anos. Estava de bicicleta à noite, passando pelo Setor Comercial Sul quando, ao aproximar de um grupo de dois homens e uma mulher que cheiravam droga, um deles o empurrou, derrubando-o. Ainda no chão, recebeu três golpes com barra de ferro e só está vivo porque um soldado chegou na hora e o levou ao Hospital de Base. Permaneceu dois dias em coma e sete no hospital. Ao ter alta, procurou o Policial Militar que o salvou e foi aconselhado a fazer um Boletim de Ocorrência. Os agressores foram condenados a oito anos de prisão por tentativa de homicídio.
Francisco é um ávido leitor de revistas. Na caixa construída para guardar os pertences, podem ser vistos exemplares do Universo Marvel, novos, que adquiriu nas bancas. Os livros compra nas livrarias ou ganha dos moradores da quadra onde mora, admiradas pelo interesse na leitura. Orgulhosamente, apresenta a coletânea completa de livros de Seleções de Rider Digest composta de 11 livros de contos, com fina encadernação em capa dura vermelha.
Ana desacredita na felicidade dele. Questiona até se haveria algo por trás da aparente calma e segurança. Estes dias passou mais de oito horas lendo, não fez nada o dia inteiro. Apenas leu. Onde quererá chegar. Na verdade, precisamos chegar a algum lugar? Explodirá em stress se nada fizer?
Em abril, tirou férias de tudo. Não catou latinha, nem trabalhos de artesanato, ficou lendo, descansando na sombra. Pode se dar a este luxo, afinal, a poupança da Caixa Econômica Federal, lhe dá lastro. “Tiro férias quando quero, sem pedir a ninguém nem dar satisfação de minha vida. Qualquer dia, quando cansar daqui, pego minhas coisas e vou para outro lugar, afinal, o que faço posso fazer em qualquer lugar”.
Francisco é um morador de rua, mas ilustra a eterna busca do homem procurando algo que talvez nunca encontre.
A letra abaixo possui um link para quem desejar ouvir a música e representa a vida de um morador de rua. Não é o caso, mas define com poesia realista, as pessoas das quais Francisco quer distância.




Morador Das Ruas Dorsal Atlântica


Bebendo sem parar, as horas não passam
E respirando o ar gelado entre prostitutas,
Travestis, desocupados,
Cheiro de luxúria e cerveja me entorpecem
Chuva bate forte no chão quente, o cheiro de asfalto
Entre você e eu só existe a noite
E a vontade de nos encontrar
Essa estranha sensação de abandono fica solta no ar

Encontro sem hora marcada
Esse ruído insistente de silêncio
Ligados pelo mesmo sentimento final

Esquinas, ruas mudas, espreitando em silêncio
Ouvindo-nos andar e arfar

Morador das Ruas

Precisa ser livre, não se sentir preso a nada e ficar
Apenas o mundo sem obrigações
O próprio reinado do morador das ruas
Só, viver, livre, agora

Se essas ruas pudessem ser minhas
Eu poderia abraça-las
Senti-las vivas pulsando
Sugando a vida de quem passa nelas
Ou se quisesse destruir tudo como um crime passional
Para que isso? Por que não ir embora e esquecer?
Estou aqui sei que vou ficar, porque aqui é meu lugar

COPIE E COLE EM SEU NAVEGADOR PARA OUVIR A MÚSICA

http://www.vagalume.com.br/dorsal-atlantica/morador-das-ruas.html#ixzz1LEI5t2Qg

2 comentários:

  1. Conheço este senhor e NÃO CONCORDO com o que diz...
    Minha avó e mae do Francisco Kaefer sra CAROLINA DOS SANTOS KAEFER esta vivinha da silva e que DEUS a conseve por muitos anos...Não concordo quando diz que meus tios o maltratavam, quem ama cuida,e se é um estilo de vida que ele escolheu, a familia não teve participação....Quanto a eterna procura e solidão que sente...Somente em JESUS CRISTO pode encontrar abrigo e preencher o vazio...Meu nome é Renata Kaefer, moradora de Cuiabá (MT), nascida em Cascavel Paraná...Email para mais informações renata.kaefer@gmail.com

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    Respostas
    1. Olá Renata, o Francisco vive nas ruas e parece que gosta muito, mesmo com todas as dificuldades. Só ouvi o lado dele, e não o julgo, apenas descrevo o que notei. O número de moradores de rua é muito grande e todos tem histórias interessantes para contar e em comum a sede da liberdade e a fuga dos compromissos com pagamentos de contas. como se debate a civilização moderna. Um abraço e obrigado por seu comentário. Fica o esclarecimento.

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