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sábado, 3 de setembro de 2011

A CULPA FOI DELE, SÓ DELE

(Foto: Google imagens)






Aquele quarto nunca me parecera tão grande. A cômoda, os armários com minhas roupas solitárias. Tudo me lembrava nossa convivência de trinta anos. Ao final do casamento, constatei que pouco o conhecia. Éramos estranhos. Fantasmas solitários dentro de casa. Para aplacar o distanciamento, buscava conforto com minha família. Consolavam-me dizendo “casamento é assim mesmo”.
Antes de conhecê-lo havia desistido de casar. Repensei a decisão por sua ousadia em perguntar se poderia sentar a meu lado no cinema. Após a sessão, saímos para jantar e ficamos até tarde. O teste final aconteceu ao apresentá-lo a minha irmã mais velha. O comentário fez a diferença, “fique com ele, tem emprego seguro, é atraente, será boa companhia e tua chance de ter filhos”. Nem perguntou se o amava. Sempre teve influência sobre mim e, por comodismo, entreguei-lhe as rédeas da vida. Anos mais tarde percebi que era invejosa e direcionou minha vida a lhe atender. Até hoje, qualquer coisa que faço, passa pela aprovação dela.
Agora vejo com clareza que seria impossível uma união longa entre eu e Afonso. Pensava apenas em engravidar. “A mulher deve ter filhos”, dizia mamãe. Aos poucos acostumei a seu jeito de ser. Do primeiro filho, por orientação de minha irmã, fiquei grávida no início do casamento. Estava em idade de risco para a primeira gestação. Percebi-o reticente, mas nem preocupei, “é a mulher que dá as cartas na espera do filho” dizia ela. Tivemos três.
Afonso e eu éramos felizes até surgir os problemas de coração e quase morrer. A partir daí, tornou-se outro homem. Um desconhecido. Como se eu fosse a causadora do problema de saúde. Repetia sempre “como tive outra chance, agora levarei minha vida”. Meu desejo era ele voltar ao que era. Certa vez falou em mudar de vida, se sentia insatisfeito com a relação. Ao comentar com a irmã, veio a solução “fique quieta, logo ele esquece, volta a fazer as coisas de sempre, nem lembra mais”.
Desconfiei que tivesse um caso. “Homem deve sofrer na mão da mulher”, garantia minha irmã, “fique tranquila que doente e velho ninguém quer.” Estranhei o conselho, mas segui a risca. Passei a ignorá-lo dentro de casa. Permanecemos assim por três anos, tempo suficiente para restabelecer do transplante de coração.
Nossos diálogos foram escasseando, mas nem imaginava separarmos. Ele gostava de sair mas raramente o fizemos. Detestava quando ficávamos a sós, sem assunto. Era conversador. Falava com garçons, o caixa ou mesmo com clientes de mesas vizinhas. Sempre tive dificuldade em fazer amizade.
Com a mudança de comportamento acreditei haver outra mulher. Certa vez, minha irmã lhe chamou atenção, criticando-o. Ele se fechou. Mais tarde, liguei os fatos e compreendi que perdera meu marido. Se nossa relação vinha ruim, o fato serviu para acabar definitivamente.
Depois da separação, uma colega aconselhou esquecê-lo. Pensar no saldo da relação, nos filhos por exemplo. Sugeriu que namorasse. Como me divertir sabendo estar com outra mulher? Teve várias enquanto vivia comigo. Era incorrigível!
Confesso que em nenhuma ocasião o peguei com outra. Sempre fez escondido. Para não ser visto, frequentava lugares públicos desacompanhado. Muito esperto!
Quando adoeceu, pensei haver chegado sua hora. Mas recuperou. Passou a sair só. Frequentar cinema. Chegar tarde. Trocar o horário do futebol. Assumiu de vez a vida mundana. Porque deixou de gostar de mim? Que foi que fiz? Onde errei? Minha irmã está certa: Afonso não tem coração.
Agora estou só. Onde estará minha irmã? Será que morreu? Os filhos casaram. Há quanto tempo estou no quarto? Chego a pensar que esta não é minha casa. Quando batem a porta só vejo velhos enrugados! Prefiro ficar só. Não tenho rugas. Onde está o armário? Quero trocar de roupa e trabalhar. Perderei a hora.
“Afonso! Cadê meus remédios?”


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