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sexta-feira, 9 de março de 2012

APRENDIZ

(foto Google Imagens)


“Mãe estou grávida.” Em três palavras Kátia resumiu a resposta da vida ao descuido. A mãe parecia surda. Saiu da kitinete nos fundos da casa, onde a filha se alojava provisoriamente, sentou a beira da piscina e admirou as ondas azuis. Nuvens escuras e vento a farfalhar o coqueiro anunciavam tempestade. Recordou o próprio passado na terra natal, quando conheceu o pai da menina. Antes de casar, ela própria teve que decidir sobre fazer ou não dois abortos. A memória dos procedimentos a acompanham até hoje. O primeiro, forçado pela mãe, temerosa da falação de vizinhos e o segundo porque aprendera o caminho da clínica e temia as cintadas do pai. Logo depois, casou-se e teve duas filhas. Se por um lado Kátia foi criada cheia de vontades atendidas, por outro, experimentou das mesmas chibatadas da mãe. Com a gravidez da filha, Sônia confrontou-se com o passado e o peso das decisões adolescentes.

Os primeiros pingos da chuva começaram a cair e Sônia retornou vagarosamente a casa principal. Passou pela cozinha e engoliu um calmante. Na sala, Alfredo, o segundo marido interrompeu a leitura ao ver a mulher encharcada, aproximou-se e perguntou o motivo.

“Kátia está grávida”, falou Sônia, despejando a angústia interna. Alfredo fechou o livro sem demarcar as páginas. De cabeça baixa, a mulher desabou pesadamente na poltrona, recostou-se e fechou os olhos, como quem tenta dormir para depois acordar de um sonho. Antes de adormecer, ouviu a voz do marido que acentuou a última frase “para mim chega, manda tua filha embora daqui. Já deu trabalho demais”.

A tempestade chegara furiosa e os ventos bateram a janela do andar superior. Alfredo subiu as escadas devagar. Há muito perdera a agilidade da juventude, quando reformara a casa para construir os quartos no primeiro andar. As dores no joelho direito o irritavam e, somado a consciência do incômodo que a enteada representava desde a adolescência, faziam fervilhar os pensamentos. “Mas que menina rebelde, que vá morar na rua”, desabafou para si mesmo. Acendeu um cigarro e recolheu-se ao quarto.

A noite no inverno gaúcho chega mais cedo e encontra Sônia ainda dormindo na sala. O relógio do aparelho de DVD indica nove horas quando um trovão seco acorda a mulher que repara a casa as escuras, iluminada apenas por velas que fornecem luzes bamboleantes com sombras escuras.

A chuva passara. Sônia pega a lanterna e retorna ao quarto da filha, encontrando-a chorosa com o rosto enfiado no travesseiro “Você tem poucas alternativas. Uma é cogitar o aborto a outra é consultar o pai da criança e sair daqui hoje”. Kátia passou em revista o passado pleno de desmandos e malemolências que a mãe e Alfredo engoliram dela. Nada convencional e sim, atribulado, rebelde e inconsequente.

Decidiu ter a criança, mas desempregada há um ano, a primeira questão era como se sustentar. Pensou que talvez a solução fosse dividir as preocupações com o pai da criança que carrega no ventre. Após breve conversa, o rapaz a buscou para morar na casa dividida com a irmã, a mãe, dois sobrinhos e três filhos menores, sob sua guarda desde a separação da ex-mulher. A chegada de Kátia na pequena casa de três cômodos serviu para esquentar os ânimos e o conforto. O que era sofrível tornou-se insuportável e pleno de desentendimentos. Como era a única a não pertencer à família, sentiu que o namorado a deixava de lado e a solidão da convivência a isolou no quarto.

Quatro dias e Kátia liga ao pai, fala dos desentendimentos e da briga com o namorado. Estava na Delegacia da Mulher de Cruz Alta e pedia que a buscasse. A jovem estava deformada pela agressão e pediu que lhe levasse de volta a casa da mãe que, para recebê-la novamente, impôs inúmeras condições, aceitas sem restrições.

Ao chegar a casa de Sônia e após tocar a campainha, o diálogo entre os pais biológicos de Kátia foi sofrível. Aqui narro da forma mais fidedigna.

“Quem é?” pergunta a dona da casa”com voz impaciente.

“Kátia”! responde o pai da moça.

“Porque não ficou com ela?” Joga a mulher.

“Não tenho lugar para ela”. Responde, referindo-se ao apartamento de quarto e sala onde mora.

“Como assim, não tem lugar para ela?” A voz da mulher soa ameaçadora.

E o pai da moça explica “Não tenho lugar, ora”. Como se Sônia ignorasse a primeira resposta.

O pai balança a cabeça e exclama para si mesmo – “E ainda tenho que aguentar isto! Ainda tenho que aguentar isto!”

A porta principal se abre, Kátia se despede chorando e entra de cabeça baixa. Atrás dela a porta fecha com estrondo surdo.

Na falta de independência, manda quem dá as cartas e assim, Kátia abre mão, mais uma vez, das rédeas de sua vida e as entrega novamente a mãe, que a submete a regras duras. Apesar de contar trinta e cinco anos, continua despreparada para a vida. Necessita seguir em análise para compreender as tendências que a levam a se aproximar de namorados violentos que a excluem de sua vida com um só golpe. A idolatria inicial se transforma em aversão violenta.

Quando filhos inconseqüentes delegam suas vidas aos pais, ou por não saberem se cuidar ou por costume, a vida educa. Por outro lado, pais que poupam filhos de dissabores para economizar sofrimentos, lá na frente saberão que o ensinamento poupado faltará para o enfrentamento de desafios difíceis e se sentirão impotentes e engessados.


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