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domingo, 27 de maio de 2012

SOU MORTAL - O IMPACTO – PARTE II

(Foto Google - Imagem)

Ao receber o diagnóstico, a vontade era sair do consultório correndo pelas ruas, aproveitando os últimos momentos. Mas ao contrário, desanimado, prostrei-me em casa. A partir do dia seguinte, iniciei a romaria de exames e consultas para ouvir segundas e terceiras opiniões. Alimentava a ilusão da opinião contrária, do engano nos resultados dos exames, do erro de diagnóstico ou troca de documentos.
Após ouvir outras opiniões médicas, confirmou-se o diagnóstico e a unanimidade do tratamento. Teria mesmo que fazer cirurgia e quimioterapia. A ficha caiu. Passar por corte no corpo, me aterrorizava, levara no máximo, dois pontos ao cair de bicicleta e machucar o joelho aos dez anos. Abrir a barriga soava como sacrilégio. Sobreviveria? Caso sim, com que qualidade de vida? Havia chegado minha hora? Com 52 anos, me sentia muito bem. Nadava em dias alternados. Abolira o cigarro há muito tempo. É verdade que almoçava fora de casa e aos finais de semana tomava cervejadas com churrasco. Mas milhões fazem isto.
Crescia o sentimento de mudança, não somente pelo que o médico dissera. Era um sentimento interno. Um ciclo se fechava e sabia que desagradaria gente querida. Mas era inevitável. Precisava de coragem para viver de maneira verdadeira comigo mesmo, descartando a vida que esperavam de mim. Na verdade queria me impor e viver o meu modelo, pois entendia que aquele que vivera até então, nada tinha a ver comigo.
Passei a questionar cada vez menos o porquê de acontecer comigo. Queria conhecer a doença para estimar minhas chances e a gravidade da situação. Dedicava-me dia e noite a ler tudo que pudesse. Desvalorizava conversas fúteis. Entendi que os outros seguiam  rumos preocupados com formigas enquanto eu era atacado por leão.
A apatia que me abateu após o diagnóstico, a partir da decisão de conhecer a doença, deu lugar a um ímpeto de luta, de oferecer máxima resistência e, na medida do possível, sair vencedor. Alternava momentos de prostração e euforia.
Era uma luta de fases. Em uma delas, passei a oferecer trocas. Se conseguir me safar disto, serei assim. Buscava barganhar a cura. Se sair bem na cirurgia, prometo ser um ser humano melhor. Passava os dias no balanço das fases.
Enquanto esperava os resultados de exames que habilitariam a cirurgia, o processo de mudança germinava. Passava a vida como um filme. Em um determinado dia peguei o carro e, enquanto percorria a estrada Brasília/Goiânia tentava entender minha solidão perante o problema. As doenças tem a capacidade de nos demonstrar a verdade inexorável de que estamos sós na batalha pela vida. Mesmo cercado da família e de amigos, a luta é solitária. Impossível quem está de fora avaliar isto. Cabia a mim e somente a mim, passar por aquilo. A solidão é verdadeira e, por maior apoio oferecido, a ajuda é de dentro para fora.  Neste dia, fui até Goiânia e retornei. Cheguei de madrugada em casa e, cansado de dirigir e pensar, evitei explicações de onde estava, afinal não podia fraquejar e adoecer, para mim, ainda era profundamente vergonhoso. Assumir que a saúde tinha–se ido, no meu entender, me inferiorizava. Deitei insone. Quieto na cama questionei mais uma vez o porque disto. Sempre fizera tudo tão direitinho. Dois casamentos, sendo três filhos no primeiro, dois no segundo. Sempre cuidara deles, trabalhara muito. Dei a todos o máximo conforto, boa casa, comida, educação de primeira, carinho, boas pensões alimentícias. De repente isto. Com a mudança me assolando, era necessário dominar a ansiedade e enfrentar com otimismo o que vinha pela frente. Quando amanheceu, percebi um dia difícil pela frente. Pouco dormira e, ao perceber-me só em casa, mais uma vez, chorei. Chorei pelo que adiei fazer, chorei por não ter tempo de fazer e, finalmente, chorei pela incapacidade de impor meu modelo existencial. Certamente o futuro se avizinhava incerto.
 Devo deixar claro que tive muito apoio, da família, amigos e amigas que se desdobraram em palavras de conforto.  Muitas pessoas se afastam é verdade, mas as que ficam realmente ajudam. Nem todos sabem se aproximar numa situação destas. E mesmo aqueles que ficaram distante, permaneceram atentos na minha recuperação.
Aproximando a cirurgia, um dia pela manhã recebi o telefonema de uma amiga propondo encontrarmos. Tivera um HPV, que quase desenvolveu a câncer de colo uterino e, após tratamento, levava vida normal. Sugeriu naquele mesmo final de tarde, no estacionamento ao lado da Igreja São Camilo de Lellis na entrequadra 303/304 sul. Chegamos praticamente juntos e estacionamos lado a lado. Abri a porta, entrei no carro dela e percebi um leve perfume que me fez bem. O sorriso era largo e acolhedor. Sentia-me mal emocionalmente o que notou e pegou minha mão. Perguntou, “Marco, você está pensando que vai morrer?”. Foi a primeira vez que ouvi isto de outra pessoa e, ouvir assim a queima roupa, estremeci. Na verdade, até pensava nisto, mas precisava de coragem para encarar.  Demorei a assimilar a frase e senti que choraria novamente. Abraçou-me fraternamente. Seu abraço e a vontade velada de apoiar solidariamente a um amigo, somou-me forças e segurei a mão entre as minhas. Deixou-me chorar silencioso e, após cerca de dez minutos, interrompeu, “ainda não respondeu”. Calmamente, olhando em meus olhos, pois permanecia calado, acrescentou, “pois você sairá muito bem desta, Marco, eu sei”. A convicção desta frase me espantou. Olhei-a nos olhos e percebi que falava sério. Mas de onde tirara aquela afirmação? Conversamos mais um tempo e finalmente articulei a resposta, “não quero morrer”, afirmei. Beijei seu rosto, abri a porta do carro e segui em direção a Igreja, onde permaneci até o padre se aproximar e, colocando a mão em meu ombro, falar no ouvido “o senhor pode voltar amanhã, se quiser”. Eram nove horas da noite. Aquela conversa foi impressionante e, pela primeira vez desde o diagnóstico, dormi a noite toda.
Minha condição avalizava muitas coisas e ao entender isto como ganhos percebi o segundo passo importante da reforma pessoal. Visualizar o positivo nas pequenas coisas. Precisava estar só e preparar a estratégia de luta e isto, no fundo, passou a me trazer otimismo. Nadava, lia, escrevia, ia a cinema, caminhava toda manhã no Jardim Botânico e me preparava da melhor forma possível para enfrentar a cirurgia que se aproximava.

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