LEIA TAMBÉM:"ARQUIVO" e "PÁGINAS"

Dificuldades para comentar? Envie para o email : marcotlin@gmail.com
****************************************************

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O MUNDO DÁ VOLTAS, BACELAR

(Google Imagens)

Após dois dias em coma, Bacelar acorda e, ao tentar mexer pernas,  braços ou simplesmente os dedos dos pés, percebe completa inanição. A única sensação de estar vivo foi o zoar do aparelho de monitoramento cardíaco. Guardava na lembrança a fisgada no lado esquerdo do rosto, a forte dor de cabeça e o repuxar teimoso do lado direito que o fez cruzar sinal de trânsito vermelho com o pé no acelerador. As fortes luzes do teto queimavam os olhos e neste cenário, todo branco, com odor de éter, onde o tempo deixava de ter importância, ouviu a voz familiar de Graça sua filha, que o alegrou e a seguir a do genro que o entristeceu. Percebeu-os aos pés da cama em conversa sussurrada.
O que ouve com o bode velho teimoso? – falou Gerson a mulher.
Parece que brigou com um diretor e acabou sofrendo um AVC de grau cinco, o mais grave segundo o médico. Mas pelo amor de Deus, pára de chamar meu pai assim – disse a filha, abatida e desanimada. – afinal, tudo que temos é graças a seu trabalho duro. Mamãe demorou a avisar achando que era coisa passageira.
O paciente ouvia tudo na solidão e imobilidade da doença e pensava o quanto aquele idiota do genro tivera parcela de participação.
Desde o início do namoro, dizia à mulher querer um homem melhor para a filha. Antes da chegada do “intruso”, como se referia, a família era unida e os planos seguiam de vento em popa. A fábrica estava na melhor fase e programava a exportação de produtos a China. A coisa desandou quando a filha única conheceu Gerson e quatro meses depois engravidou, garantindo assim prevalecer seu desejo de se casar com o rapaz. Em seis meses casaram em uma cerimônia aquém da programada.  Todo o movimento contrário ao casamento esmorecera frente ao amor entre os jovens. Amor capaz de  remover obstáculos e dobrar o pai furioso. Na época do casamento, a mulher o convenceu a patrocinar uma grande festa, que foi desprezada pelo genro soberbo e o enlace aconteceu na igreja perto dos pais do noivo e a festa no salão paroquial, embalada por música de pagodeiros, regada a cerveja e doces encomendados no supermercado. Bacelar então montou casa para os jovens, que foi abandonada e o casal passou a residir em casa vizinha aos pais do marido.
Gerson era rapaz de hábitos simples e até o casamento, morava em casa de dois cômodos com os pais na Ceilândia, cidade satélite de Brasília. Mal terminara o segundo grau, a filha do empresário, administradora de empresa, fora preparada para gerenciar os negócios. O pai não contava é com Graça fisgada pelo coração sonhador e simples do rapaz. Bacelar tinha certeza que fora a busca da filha por alguém parecido com ele, também de origem humilde o que influenciou na escolha.
Na única vez que foi visitar a filha, Bacelar não economizou palavras para exprimir a precariedade da moradia e tanto humilhou como desafiou o genro a dar o mesmo conforto que Graça tinha antes do casamento. Desta única vez que os visitou, floresceu a dor de cabeça do pai que nunca mais o deixou. O desgosto tomou conta da mansão do empresário que permanecia quieto e solitário em casa, pouco falando com a mulher.  
As tentativas de reaproximação entre os dois, feitas por Graça, para que o rapaz trabalhasse na fábrica, eram rechaçadas pelo pai que afirmava categórico:

Um dia, minha filha, você irá voltar para casa sem “o intruso” e terá novamente as roupas de grife que você adora usar. Hoje você veste somente roupas de feirão. Este idiota não tem condições de assumir a empresa.
Bacelar, imerso forçadamente em pensamentos era observado pelo neto que olhava o avô como a um fantasma. Dor não tinha. Notou a visão turva mas os ouvidos estavam atentos e assim escutou a mulher  cumprimentar a todos e a ele, dirigir apenas um comentário maldoso, feito por não saber que o marido a tudo escutava.
– Ta vendo no que dá querer mandar em todo mundo? Agora, todos mandam em você.
Filha, agora você pode pensar em voltar para casa, o médico falou que não há prazo para recuperação. O caso é grave e acredita em recuperação gradativa e muito lenta.
A mulher fez uma pausa para se certificar que foi entendida e continuou em tom grave.
– Agora a fábrica é sua e de Gerson e o melhor é assumir imediatamente para manter a continuidade. Falei com o contador, que amanhã reunirá a diretoria com o advogado para assumirem a gerência legalmente. Seu pai após a alta será instalado no quartinho da Clotilde no andar térreo lá de casa, onde ficará confortável.
Bacelar ouvia atentamente, impedido de qualquer reação. Apenas a mente trabalhava. A mulher saiu da sala e deixou o casal a conversar na frente do enfermo.
– Por mim, colocava o velho numa casa de saúde, afinal está um vegetal mesmo! – o rapaz destilava veneno recebido do sogro ao longo dos anos e fazia questão de demonstrar. Mesmo se soubesse que o sogro a tudo ouvia, era bem capaz de falar assim mesmo.
– Pára com isto, querido, papai sempre quis nosso conforto. Fazia tudo para mim e você usufruiu muito disto – a filha era grata ao pai.
Na verdade Gerson lembrava apenas que o sogro o humilhava a mesa nos almoços de domingos e nas reuniões familiares o classificava de formas negativas.
– Pois saiba que há tempos tomei ciência do andamento das finanças, querida. Não andam nada boas e expandir para a China é péssimo negócio, assim mandei abortar os planos. Temos que focar no Distrito Federal. Teremos que reduzir a empresa a dez por cento do que é hoje, para se manter no mercado.
Na cama, prostrado, Bacelar percebeu que nada podia fazer. Dependia de decisões de outros e concluiu que a empresa, sua propriedade e que proporcionara tanto prazer e conforto e até mesmo a filha que criou e educou nas melhores escolas, não mais lhe pertenciam. 
Fechou os olhos e passou a viver de fantasia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é importante