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quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A CIDADE DA SERESTA

(O Túnel que Chora - arquivo pessoal)

Eram sete horas da manhã de sábado quando avistei o senhor a montar as barraquinhas de venda de bijuterias e outras quinquilharias na praça, defronte a Igreja Matriz. A cidade jazia adormecida enquanto ele trabalhava. Outro homem o observa de perto. Parece olhar através do montador e das ferragens. Inerte em sua frente, vez por outra faz um comentário que o senhor nem se digna responder. Um leve chuvisqueiro cai insistente. Levantei a gola do casaco e me escondi sob a árvore, enquanto observava o senhor colocar um varão de ferro de cada vez  e encaixar em argolas para dar sustentação. O trabalho paciente indicava que mais tarde haveria feirinha. Passei devagar. Estava absorto na montagem e em seus pensamentos.  O que observava me olhou com olhos vazios.
No meio da rua, mais abaixo, aparece uma senhora e grita sem preocupar com a cidade que dorme:
– Ei! Pode parar de montar. Com esta chuva, não haverá feira.
O homem deixa cair um dos varões com estrondo, torce a boca e fala para si mesmo, determinado:
– Vou terminar de montar esta e paro.
Armou a quarta barraca e iniciava a colocação da lona amarela comum a todas, quando resolvi chegar perto.
– Hoje terá feira? – perguntei.
– Claro. Quando chove é sempre assim. Ela cancela e depois a feira acontece e tenho que correr a montar o resto das barraquinhas para os feirantes. – responde sério, avaliando que me referia ao comentário da mulher.
– O senhor é da cidade? – insisto.
– Nasci aqui e monto as barraquinhas há mais de trinta anos.
Saio devagar, e faço uma foto da igreja Matriz.
Estava em Conservatória, cidade distante do Rio de Janeiro cerca de 150 quilômetros. Participava de um Encontro Nacional e aproveitei para conhecer a “Cidade da Seresta”, paraíso dos seresteiros. Acredito que a última representante de um tempo que não volta mais. Havia chegado na sexta a noite e ficaria até domingo. Foram três dias na cidade de seis mil habitantes, onde o tempo, contrariando o resto do mundo, é docemente lento. Voltei para o hotel, pois teria o dia pleno de atividades.
(Roupa do filme O É brio de Vicente Celestino-arquivo pessoal)
À noite, após dia intenso, voltei à cidade. Entrei no Museu de Vicente Celestino e Gilda Abreu e mergulhei num passado bem perto de minha infância, quando ouvia as músicas tocadas em discos de vinil por meus pais. Wolney Porto, curador do espaço, colocou um disco de Celestino e me atendeu com cortesia. “A noite haverá seresta na rua” indicou o evento que aconteceria mais tarde na praça principal onde um grupo se reuniria para tocar e cantar. Quando digo que sou de Brasília, me pergunta se posso ajudá-lo a ter alguma ajuda federal para a manutenção dos museus dos quais é curador. Respondo que minha missão na cidade é outra e que colocarei o pleito no meu blog.
Voltei ao hotel para a janta e animei um pequeno grupo para comparecer ao evento. Mais tarde atravessamos a pé o “túnel que chora”, eu pela segunda vez. A obra construída pelos escravos, separa a cidade do resto do mundo. Pode ter sido pela época, mas o túnel, charmosamente, comporta apenas a passagem de um carro. Quando outro aponta da posição contrária, deve  esperar que passe para ir em frente.
(Caminhada em Seresta - arquivo pessoal)
Logo ao término da travessia, ouvimos o som dos violeiros. E quanto mais nos aproximávamos, mais éramos envolvidos pela voz dos cantadores e a harmonia dos violões. A seresta acontecia com seis integrantes, coordenada pelo seresteiro Edgar, morador da cidade. Mescla integrantes não apenas de Conservatória, como também de fora, como é o caso de Roberto, vindo da Cidade Maravilhosa toda sexta feira a fim de soltar a voz melodiosa e firme. E pouca chuva não impede a cantoria. Interrupção só acontece por fortes relâmpagos e trovoadas. A garoa mistura-se a emoção e embaça os olhos dos turistas em lento caminhar:
Felicidade, foi se embora e a saudade no meu peito, ainda mora e é porisso que eu gosto lá de fora, porque sei que a falsidade não vigora...”.  
Vez por outra, Edgar pára e declama poesia, demonstrando a excelente memória. Não me contive e, resguardado pelo canto dos demais turistas, soltei a voz me sentindo o rei da serenata.
Cerca de duas da manhã, a cantoria acabou e Edgar recebe para conversa sem tempo marcado, pois seresteiro não tem pressa para boa prosa. E fez a declaração bombástica da noite: “nosso trabalho é por amor a seresta, não ganhamos um tostão pelo que fazemos”. Despedimos e saímos cantando de bar em bar. Todos com as características dos botecos cariocas, com samba ao vivo, exibindo o gingado da mulher carioca.
(Aproveitei farol de carro as três da manhã - arquivo pessoal)
Atravessar túnel, a pé, as três da manhã, em qualquer cidade, seria temerário, mas não em Conservatória, que inspira inocência e tranquilidade. No meio do túnel, alguém cantava uma seresta, que ecoava pelo espaço fechado.
“Dorme e fecha este olhar entardecente
Não me escute nostálgico a cantar
Pois não sei se feliz ou infelizmente
Não me é dado beijando te acordar”.
Domingo era dia de retorno e, após as atividades matutinas e as despedidas entre os 380 participantes do Encontro, o ônibus partiu em direção aos aeroportos do Rio de Janeiro, descendo os 520 quilômetros de serra. Ao encontro, compareceram representantes de todo canto do país, do Oiapoque ao Chuí. No retorno ao Rio, a beleza da vegetação e a conversa animada. Conservatória ficou para trás, mas permanece nos planos de conhecê-la melhor em outras visitas com mais tempo.
Serenata é algo esquecido e hoje habita apenas a memória. É mais ou menos assim. Eu tinha cinco anos e morava em Uruguaiana. Nas noites de sexta feira chegava um grupo musical com um rapaz chamado Helvécio que cantava para a vizinha, chamada Arlete. Depois das canções, eram convidados a entrar pelo dono da casa, pai da moça, que lhes oferecia bebida e a partir daí a vizinhança participava até tarde da noite. Um dia tudo parou, o cantor e a jovem casaram-se. As serenatas acontecem até o casamento.
Olho a rosa na janela,
sonho um sonho pequenino...
Se eu pudesse ser menino
eu roubava essa rosa
e ofertava, todo prosa,
à primeira namorada,
e nesse pouco ou quase nada
eu dizia o meu amor, o meu amor

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

VERDES MARES DO NORDESTE


(Cumbuco-CE - Arquivo Pessoal)
São quilômetros e quilômetros da linda beira mar oeste. Aqui e ali coqueiros carregados oferecem frutos para o viajante sedento. O sol forte clareia a paisagem de amarelo ouro e vez por outra aparece alguma lagoinha salgada para banho puro e sem ondas.
Como diria Ana Miranda, poeta cearense,
E quando ali retornarmos
Verás que nunca nos fomos
Pois o lugar onde estamos
O lugar onde estaremos
É sempre o lugar que somos

Assim reencontrei o litoral cearense, após dois anos. Desta vez, foram quatro dias intensos de emoções, conhecimento e restauração de energias. Compartilho com quem gosta das pequenas coisas da vida e que, como eu, julgam ser as verdadeiramente importantes.

(Pousada Ondas do Mar - Arquivo Pessoal)
 Hospedamos em encantadora pousada na região de Barramar de Taíba, a cerca de 70 quilômetros de Fortaleza. O acesso acontece por estrada de terra trabalhosa, esburacada, cheia de pedras, mas o destino recompensa. Propriedade de casal italiano, a pousada Ondas do Mar é aconchegante e intimista e os donos, Milton e Maura, estão sempre dispostos a resolver quaisquer problemas que apareçam. Com eles, revivemos cenas dos meus ancestrais também vindos da Península Ibérica em fins do século XIX. Situação semelhante a deste casal, fugiram da situação calamitosa que se abatia sobre a Europa. Em princípio do século XXI, novamente o caos econômico se abate sobre o Velho Continente e obriga famílias inteiras a emigrar e ao que parece o Brasil novamente é o destino. No final do ano estarão se radicando definitivamente no país e trarão a única filha, o genro e o neto para trabalharem na pousada. Encontrei vários empresários europeus, principalmente italianos, espanhóis e franceses investindo no litoral cearense, montando comércios, resorts, hotéis, restaurantes, pousadas e outros negócios. Louvam as possibilidades que o país oferece para estabelecer. O que chama a atenção deles é o clima, “calor o tempo todo”, fala Milton apontando para a camiseta regata, bermuda e chinelos confortáveis.
Meus planos desta vez era conhecer Paracuru, praia distante de onde estávamos apenas 30 quilômetros. E isto aconteceu no segundo dia. Na ida, querendo economizar tempo aventurei-me em estrada de terra pedregosa e poeirenta, mas alternativa de atalho substancial. O que nos deu chance de fazer a foto de um cajueiro, entre as centenas existentes em plantação nativa. Malu e eu fomos ciceroneados por Karina, minha filha que mora na praia de Taíba e o namorado Nacélio. Ao chegar a cidade, na primeira oportunidade, colocamos os pés na água e constatamos a temperatura extremamente confortável. Enquanto o sol contornava em volta da barraca do Kaká, sem nos atingir, conversávamos embalados pela brisa amena que amansava o calor abrasador. O céu carregado de kitesurfs com suas pipas amarelas, lisas, estampadas, desenhadas, amarelas, azuis ajudava ao assanhamento dos turistas de várias idades e nacionalidades, ávidos de usufruir da boa vida tropical. Casquinha de caranguejo foi a entrada, acompanhada de refrescante caipirosca e porções de camarão, dos grandes. No almoço, um delicioso dourado com saladas. Postas fartas preparadas com esmero. O cachorro ao lado da mesa cansou de esperar e foi embora, certamente percebeu que daquele mesa não teria sobras. Sem pressa, alongamos o papo por pelo menos seis horas. Esticamos ao máximo, pois sabíamos que cada minuto era importante considerando o pouco tempo de estada em solo cearense. Saímos de Paracuru ao entardecer e paramos em uma lagoa para conhecer e tomar água de coco. Logo fomos cercados por famílias de ovelhas protegidas por um bode ranzinza que me encarou várias vezes, gansos, patos e um pavão que teimou em deixar o longo rabo colorido fechado. Durante todo tempo acompanhamos a sedução de um peru, este sim de rabo aberto em leque, que de nada adiantou pois a perua estava firme no propósito de manter a guarda fechada. Ao anoitecer, retornamos a Taíba para tomar açaí na tigela, a delicia do norte/nordeste. O retorno aconteceu pela estrada asfaltada, claro, pois de poeirão bastou a ida.
(Altar em Cumbuco - Arquivo pessoal)

No terceiro dia, Malu e eu testemunhamos o casamento de filhos de amigos de Brasília na praia do Tabuba, em Cumbuco, distante 30 quilômetros de onde estávamos, sentido retorno a Fortaleza. A cerimônia foi montada em um altar simbólico e singelo, com galhos de árvores nativas fincados a beira mar. Emoldurando a cena, um belíssimo por do sol e alguns surfistas que cortavam ondas em pranchas velozes. No céu, pipas de kitesurf ondulavam em vai e vem lento. A noiva, com o mais belo dos calçados, os próprios pés, bailava com o vento e com a felicidade que só as noivas sabem e comentou que “não cabia em si mesma de tão contente”. Transbordava a alegria para convidados, na grande maioria, viajantes que deslocaram cerca de dois mil quilômetros participar do evento paradisíaco. Ao final da festa, o noivo, com o calor que fazia, dispensou o paletó e abriu os botões da camisa, celebrando o clima de descontração emprestado a festa. Uma bela e ao mesmo tempo singela cerimônia que satisfez os gostos mais exigentes, com simplicidade, carinho e alegria.
Ao final da festa, retornamos a pousada. À nossa direita, fomos homenageados  pela noite do Ceará, que ofereceu a lua a pratear o mar, a estrada e a vegetação durante todo caminho de volta.
O dia seguinte amanheceu mais bonito que os outros, como se  fosse possível. Tomamos café, tiramos algumas fotos finais com Karina e o namorado na pousada onde residem e, duas horas depois estávamos no aeroporto de Fortaleza. A aventura chegou ao fim. O sentimento é de tempo  bem aproveitado. Constatamos que temos tudo para conhecer lugares e pessoas interessantes. Basta boa vontade, olhos abertos e disposição. Lugar de descansar é em casa. Todos os minutos foram curtidos por inteiro e os compartilho tal e qual ocorreu.
Espero que o litoral resista a erosão crescente, provocada pelo oceano e pelas areias que tomaram várias obras a beira mar.