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segunda-feira, 13 de maio de 2013

LEMBRANÇAS ENGANAM

(Google Imagens)

Carrego alguns fantasmas até certo ponto inofensivos, pois convivo bem com os entraves que causam. Exemplifico com a cena da avó sacrificando galinhas para o almoço. Éramos cerca de dez crianças entre primos e amigos que gostavam de assistir as atividades do dia a dia dos adultos. Uma delas acontecia no quintal de casa, onde vovó tinha um galinheiro com a finalidade de criação e abate para consumo. A morte das galinhas é trauma enfrentado pelas crianças da família que recordam com certo sofrimento,
Apesar de parecer brutal, era algo esperado e se arrastava há gerações. A vó fazia o que aprendera com os pais, meus bisavós. Após a morte de meu avô, assumiu para si o sacrifício e assisti muitas vezes derramar lágrimas escondida no galpão dos fundos.  Meu pai certa vez até tentou substituí-la, mas foi só fiasco. Não suportava agarrar a penosa pelo pescoço e dar seis voltas no ar, sentido horário para desnucar. Certo dia, a penosa se soltou de sua mão e saiu a cacarejar pelo quintal, num morre - vive sem fim. O último suspiro aconteceu com vovó e o facão de mato que usou para decepar a cabeça que voou separando-a do corpo.
Assistíamos ao ritual até o dia que alguém classificou o show de macabro e desnecessário. Fomos proibidos de assistir a matança. Quando chegava a hora, éramos conduzidos ao quarto dos fundos do quintal, de onde ouvíamos apenas os gritos esganiçados da penosa da vez.
Certo dia entrou a arte do tio Arnoldo. Armou a cena nos separando no quartinho dizendo que haveria matança, pegou as galinhas, amarrou-as pelas patas e as jogou pelo chão de barro. A gritaria foi grande e os ouvidos acostumados a ligar o som a matança, nos enganaram e a adrenalina cresceu sem motivo. Quando recordo aqueles  momentos, tenho viva a cena das galinhas pulando no quintal, debatendo-se sem cabeças, apesar do fato desmentido incansavelmente.
Assim funcionam as lembranças. Vez por outra nos traem. O que ouvimos nem sempre correspondem a imagens verdadeiras. E isto acontece também entre pessoas. Cada um monta o outro da forma que mais agrada raras vezes como é realmente. O pai e o namorado com relação ao amor pela moça é exemplo. O pai resgata a filha que viu nascer, criou e vê com a pureza da infância e o frescor da adolescência, plena de virtudes. O namorado vê a moça como a princesa afável e pudica que cuidará da casa e da prole, com desenvoltura. Poço de meiguice, projetando a imagem da própria mãe.
Assim iniciam a vida comum e as primeiras rusgas e o rapaz conclui que o queridíssimo amor não corresponde a idealizada. A moça, da mesma forma, se depara com o príncipe real, bem diferente da imaginação e do pai protetor.
Estes conflitos são usualmente os primeiros que surgem na vida do casal, pois a idealização nunca será aquilo que um espera do outro.
Melhor mesmo é esquecer este passado, aceitar o parceiro como é, sem expectativas. Pleno de defeitos e virtudes, ciente que todos somos de carne e osso. Mais tarde, se decidir matar galinhas no quintal, que tenham o bom senso de levar as crianças a um lugar seguro para deixá-las livre de gritos esganiçados.

Um comentário:

  1. Também vivi esta experiência fantamasgórico. A cada passagem do conto relembrei a menina assustada pedindo para a galinha não morrer.

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