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segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O CHEIRO QUE DÓI

Google Imagens
Para garantir que poucas pessoas sintam seu odor, Severino levanta antes do sol nascer. Toma um gole da cachaça em cima da mesa, come um sanduiche de mortadela e segue para mais um dia de trabalho. Acena para Manoelzinho, marido de Lindaura, sua ex-mulher.
— Vá lá pra trás — grita o motorista do ônibus, enquanto os passageiros  afastam para ele passar. Senta no último banco. Na falta do que fazer, pega a revista do chão e a folheia. O sacolejar do ônibus, parece querer jogá-lo para fora. Os passageiros evitam aproximar. Deveria ter ido a pé.
Talvez no lugar deles, fizesse o mesmo. Sente-se estranho. Dá sinal de descida e caminha até a porta. As pessoas se afastam tapando o nariz. Salta do ônibus em movimento. Inicia a caminhada de uma hora até o trabalho do dia. O homem que o contratou espera no portão.
— Sou Severino — apresenta-se. O homem rejeita a mão estendida e o encaminha ao fundo do quintal.
— Aqui — aponta o buraco fétido, cheio até o topo.
— É fundo? — pergunta colocando a mão aberta abaixo do peito.
— Mais ou menos — fala o proprietário, apontando o barraco onde pode trocar de roupa.
Severino coloca o calção amassado, tira o chinelo, a camisa e toma um gole de aguardente. O fedor que sai do buraco deixa de incomodar. Há trinta anos limpa latrinas. Entorna meia garrafa de cachaça, para dar coragem e enfia o pé no buraco onde a pasta fétida fermenta soltando bolhas. Inicia a descida.
Desce lentamente e o líquido toma conta do corpo. Alcançando os genitais, a cintura, o peito, finalmente o pescoço antes do pé apoiar  em terreno firme.
— Pensei que tinha menos profundidade — comenta Severino.
— Isso aí tem conteúdo de uns cinco anos — exclama o contratante com uma gargalhada.
Com a chegada do ajudante, Severino enche o primeiro balde. Levará o dia inteiro a retirar o produto.
As tres da tarde, após completar duas garrafas de aguardente, retira o último balde e entrega ao ajudante, que o coloca na caixa da carroça contratada. O cavalo desajeitado sai reclamando. Severino agarra a borda do buraco e pula para fora escorrendo lama marrom, viscosa. Quando ajeita o corpo, perde o equilíbrio e, na tentativa de se manter em pé, segura no braço proprietário que grita e afasta. Rapidamente o auxiliar toma Severino pelo braço e o senta no chão. Com a mangueira do jardim dá jatos nas costas, pés,  peitos, braços. A água limpa e gelada reanima Severino. Pede que dê um jato em seu rosto. O proprietário, traz-lhe sabão em pó e escova e o ajudante  esfrega o patrão com rigidez.
Quando o filho chega para busca-lo termina a lavação e seguem para casa lado a lado. Apesar de cansado, pai e filho seguem a pé, os ônibus não param pegar Severino.
— Pai, porque o senhor saiu da casa da frente? — Severino espanta-se com a pergunta e demora a responder.
— Sua mãe pediu e mudei para o barraco dos fundos — fez breve silêncio — Acho que enojou com meu cheiro. Logo depois tio Manoelzinho tomou conta da casa.
O resto do caminho foi em silêncio. Ao chegarem, ouviu o resmungo do homem que ocupara seu lugar ao lado da mulher.
— Já, já levarei a janta — Lindaura sorri da janela com o perfume de leite de rosas que o conquistou na juventude.
— Boa noite Severino, deposita o dindinho aqui ó, na mão do gerente do banco — esticou o braço rindo, Manoelzinho. Com a outra mão, apertava o nariz trancando a respiração.
O filho entrou na casa, ele seguiu pelo portãozinho lateral até os fundos. Desabou no banco de madeira. Perto das oito da noite, a ex-mulher chegou com o prato de arroz, feijão e carne assada. Depositou-o na mesa, junto com o boleto do IPTU e deu as costas com a respiração suspensa.
Severino raspa o prato com miolo de pão. Olha o boleto e percebe que vencimento seria no dia seguinte. Passa a mão na garrafa de cachaça, deita na cama e mira o teto de zinco.  No dia seguinte teria duas fossas para limpar. Fecha os olhos e adormece ao som do violão vindo da casa da mulher. Manoelzinho toca e canta Nelson Gonçalves todos os dias para sua amada antes de dormir..

2 comentários:

  1. Muito bom o seu conto, parabéns, se quiser acesse meu blog também, está à sua disposição.


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    1. Obrigado pela leitura e comentário. Com certeza estarei visitando o teu e deixarei minha opinião.

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